
Advogada Samantha Longo: decisão delimita o uso do stalking horse e afasta o desvirtuamento do instituto — Foto: Divulgação
Para desembargadores, venda não poderia ser feita por meio da modalidade ‘stalking horse’
A 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) revogou o leilão do tipo “stalking horse” na recuperação judicial do Grupo Educacional Oswaldo Cruz. Para os desembargadores, a modalidade que privilegia quem faz o primeiro lance não seria a mais benéfica para a empresa, por não maximizar o valor do ativo, uma vez que havia mais interessados.
Foi determinada a realização de leilão comum para vender um imóvel de 11,6 mil m²do grupo, no bairro da Barra Funda, na capital paulista, avaliado em R$ 104 milhões. A decisão é contra incorporadoras imobiliárias e fundos, que queriam ter a preferência na compra. O certame foi feito no fim de 2024, mas o vencedor ainda será decidido pelo juiz. Havia seis interessados.
Importado do direito americano, o stalking horse ou “cavalo de perseguição”, na tradução para o português, não tem previsão legal no Brasil. A autorização dada pela Lei de Recuperação Judicial (nº 11.101, de 2005) é genérica. No artigo 142, se prevê a venda de ativos por meio de processo competitivo ou “qualquer outra modalidade” para não haver sucessão de passivo, isto é, para o comprador não ser responsabilizado pelas dívidas do vendedor.
A modalidade passou a ser adotada pouco antes da reforma pela Lei nº 14.112/2020. Segundo advogados, traz mais segurança a investidores, pois funciona como um pré-acordo. Também dá mais previsibilidade aos credores e à empresa em recuperação, porque se sabe que o ativo será vendido – ao contrário de um leilão que pode ficar esvaziado.
Normalmente, é usado na venda de ativos complexos, de difícil avaliação. Antes de ser levado a leilão, o investidor faz análise de preço e apresenta uma oferta inicial, que servirá como base para o certame. Em troca, a vendedora oferece vantagens, como permitir a cobertura da proposta de terceiro para concluir a compra. Caso saia derrotado, é comum haver uma cláusula chamada de “break up fee”, em que se fixa um percentual para reembolsá-lo dos custos com a avaliação do ativo – normalmente em 5%.
“Stalking horse virou uma venda direta disfarçada, o que não é um problema” — Rodrigo Garcia
São poucas as decisões sobre leilão “stalking horse”. No TJSP, que concentra cerca de 25% dos processos do Brasil, existem 33 acórdãos que o mencionam, desde o ano de 2019, de acordo com pesquisa de jurisprudência do tribunal.
A quantidade de recuperações judiciais e falências que usa o instrumento cresceu, o que mostra maior aceitação do mercado e do Judiciário, que tem fixado as balizas para o uso. Enquanto só uma decisão de segunda instância foi dada sobre o tema em 2019 e em 2022, em 2023, foram 13, e, no ano passado, 16. Neste ano, a primeira é a da Oswaldo Cruz, publicada no dia 10.
O primeiro acórdão do TJSP que cita esse tipo de leilão é o da massa falida do consórcio nacional Autorede, em setembro de 2019. Três fundos de investimentos disputavam a preferência para comprar a carteira de recebíveis e dois imóveis da empresa. Terminou com apenas um lance, da Jive Asset, que avaliou a carteira em R$ 66,5 mil.
O ativo, contudo, de acordo com a Jive, valia R$ 1,3 milhão. Por isso, o tribunal determinou que outra avaliação de preço fosse feita, por “entidade imparcial, de confiança do juízo e que não interesse na aquisição”, já que a oferta da Jive alcançou apenas 5% do valor da carteira (processo nº 2163284-29.2018.8.26.0000).
No conhecido caso do Grupo Abengoa, no Rio de Janeiro, o Judiciário também fez o controle de legalidade. Foi declarado nulo o “break up fee” previsto no plano de recuperação judicial da empresa que previa indenização de US$ 5 milhões a US$ 25 milhões à TPG Strategic Infrastructure (TPG), que era “o stalking horse bidder”. Ele fez uma proposta de R$ 400 milhões pela participação acionária do grupo (processo nº 0029741-24.2016.8.19.0001).
O juízo acatou o parecer do Ministério Público de que seria um “evidente embaraço à livre disputa entre os eventuais interessados na aquisição da UPI Operacional”, além de “clara de violação dos princípios norteadores da realização de ativos por hasta pública, que são a ‘maximização do ativo’ e a ‘ampla concorrência’”.
Empresas como a Livraria Cultura, UTC, Grupo Estre, Avianca, Renova Energia e a SouthRock Capital, operadora de marcas como Starbucks e Subway, também já venderam ativos dessa forma. Foi adotado ainda na primeira recuperação judicial da Oi.
O diferencial da decisão do Grupo Oswaldo Cruz é que o juiz desautorizou o leilão stalking horse após muitos interessados aparecerem nos autos com propostas. “Nesse agravo, ficou claro que não basta fazer uma proposta e, por ser a primeira, se tornar o stalking horse, porque seria melhor para a recuperanda ter outro tipo de leilão”, afirma a advogada Samantha Longo, sócia do Longo Abelha Advogados.
O relator, desembargador Ricardo Negrão, negou o recurso da Zetax Incorporadora, que enviou a primeira oferta e, por isso, era considerada o stalking horse. Outros dois fundos e uma incorporadora também fizeram ofertas e argumentaram que seriam o stalking horse, um dos motivos pelos quais o juiz do caso cancelou o certame (processo nº 2262907-56.2024.8.26.0000).
O desembargador levou em conta que o ativo, por ser imóvel, é de fácil avaliação e quanto mais interessados, maior a possibilidade de uma oferta melhor. Por isso, a modalidade stalking horse “não se mostra a mais adequada”. “A realização do leilão sem proponentes com ofertas vinculantes irá garantir a maximização e otimização dos ativos da recuperanda, trazendo maior retorno para o posterior cumprimento do plano de recuperação judicial”, diz.
Também foi contra o Ministério Público e a administradora judicial do processo, Adriana Lucena, da Ala Consultoria e administração judicial. Ela foi procurada pelo Valor, mas não quis comentar a questão.
Segundo Samantha, a decisão delimita o uso do stalking horse e afasta o desvirtuamento do instituto. “O stalking horse é bem-vindo, mas não houve um trabalho de due dilligence para se conferir o direito de preferência. Então seria melhor um leilão normal, que tem mais chances de se conseguir um valor melhor”, afirma. Para a advogada, como não há previsão expressa na lei sobre o stalking horse, “é a função da jurisprudência ir dando um contorno para o negócio não se perder e se desvirtuar”.
Rodrigo Garcia, sócio do escritório Galdino, Pimenta, Takemi, Ayoub, Salgueiro, Rezende de Almeida, afirma que a modalidade resolve dois problemas em um. “A ideia é precificar o ativo e gerar uma oferta vinculante, o que dá segurança de que aquele ativo será vendido para um interessado por aquele preço”, diz ele, acrescentando que a lógica dos processos competitivos é maximizar o valor do bem.
No leilão stalking horse, afirma Garcia, as propostas normalmente são fechadas, o que favorece que o interessado dê um lance próximo ao valor real do ativo. Mas o prazo para enviar propostas, lembra, é muito curto, o que dificulta a participação de terceiros. “O mercado transformou a figura do stalking horse em uma venda direta disfarçada”, diz ele, destacando que “não é necessariamente um problema”. “A lei permite a venda por qualquer modalidade”. Segundo ele, às vezes, pode ser a melhor opção para vender o bem mais rápido.
Adriana Conrado Zamponi, sócia da Wald, Antunes, Vita e Blattner Advogados, que representou um dos fundos interessados na compra do imóvel, diz que o edital não esclareceu o direito de preferência e, por isso, houve desistência da proposta. “Alguém poderia se sobrepor à proposta final do stalking horse, então não era stalking horse”, afirma. O fundo tinha dado um lance inicial de R$ 75,5 milhões. No leilão aberto, há duas propostas vigentes, da construtora Cyrela e de outra incorporadora, de R$ 89 milhões e R$ 90 milhões, respectivamente. Mas como ambos condicionam ao estudo do solo, o juiz decidirá o vencedor.
O Grupo Educacional Oswaldo Cruz pediu recuperação em 2022, com dívidas de R$ 36,4 milhões. O plano, aprovado em julho de 2023, previu a venda de imóveis para compor o caixa da companhia, pagar credores e investir no incremento da atividade educacional. Advogados do caso não deram retorno até o fechamento da edição.
Fonte: https://valor.globo.com/google/amp/legislacao/noticia/2025/01/22/tjsp-nega-preferencia-em-leilao-de-ativo-na-recuperacao-do-grupo-oswaldo-cruz.ghtml