Insatisfação do TJ-DF resultou na formulação de um novo princípio

Tramitação da Lei 1.803/2023: Alterações no Código de Processo Civil

A tramitação da Lei 1.803/2023 tem sido acompanhada de perto e com grande expectativa pela Câmara dos Deputados. Junto ao TJ-DF, buscava-se alterar o Código de Processo Civil, considerando abusiva a eleição contratual de foro que não estivesse relacionado ao domicílio das partes ou ao local da obrigação.

A Lei 1.803/2023 foi aprovada pelo Senado em 14/05/2024. No entanto, a oposição à alteração esperava que o governo vetasse o projeto, o que não aconteceu. A força da oposição foi definitivamente perdida em 04/06/2024, quando uma cerimônia de sanção presidencial ocorreu no Palácio do Planalto, com a presença de representantes do TJ-DF.

Artigo 1º – O art. 63 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), passa a vigorar com a seguinte redação:

‘Art. 63.

§1º. A eleição de foro só produz efeito quando constar de instrumento escrito, referir-se expressamente a determinado negócio jurídico e ter pertinência com o domicílio ou a residência de uma das partes ou com o local da obrigação, ressalvada a pactuação consumerista, quando favorável ao consumidor.

§5º O ajuizamento de ação em juízo aleatório, entendido como aquele sem vinculação com o domicílio ou a residência das partes ou com o negócio jurídico discutido na demanda, constitui prática abusiva que justifica a declinação de competência de ofício.’ (NR)

Razões Não Se Sustentam

De acordo com a justificativa do projeto de lei, as partes, em respeito à lealdade processual, não poderiam escolher livremente um foro de eleição, sob pena de essa escolha ser considerada abusiva, causando prejuízos à sociedade do foro escolhido e sobrecarregando tribunais que não têm relação com o processo.

O exercício da autonomia privada na escolha do foro contratual encontra limites no interesse público, que organiza e estrutura o Poder Judiciário conforme a população e as peculiaridades locais.

As razões apresentadas no projeto não se sustentam diante de uma análise criteriosa, revelando-se como uma insatisfação das autoridades judiciárias do Distrito Federal em julgar demandas não relacionadas com seus residentes ou sua localidade.

Conforme a nota técnica divulgada pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), não há qualquer estudo que demonstre a existência de migração de foro predatória ou a criação de “oásis” jurisdicionais que atraiam inúmeros processos para uma determinada jurisdição, causando desequilíbrio na estrutura judiciária.

Contrassenso

Além disso, a cláusula de eleição de foro é uma prática consolidada, utilizada no Brasil e no mundo, e prevista em nosso ordenamento desde os primeiros diplomas processuais, sem que isso tenha se tornado um problema de interesse público.

Em tempos em que se estimula a consensualidade, os meios alternativos de resolução de conflitos e os negócios jurídicos processuais, limitar a cláusula de eleição de foro é um contrassenso absoluto.

Aliás, não se trata apenas de limitar, mas de eliminar a cláusula de eleição de foro, pois as partes não terão mais liberdade para escolher em qual foro desejam resolver suas controvérsias, limitando-se às regras de competência interna previstas nos artigos 42 a 53, podendo apenas “eleger” o domicílio das partes ou o local de cumprimento da obrigação.

Se antes a eleição de foro estava prevista na seção relativa à modificação da competência, agora podemos simplesmente esquecê-la, pois estaremos limitados à eleição de foros previstos nas regras gerais de competência.

Seara Empresarial

No Direito Empresarial, é comum, senão padrão, a utilização da cláusula de eleição de foro para jurisdições que não guardem relação com o domicílio das partes ou com a obrigação. Tal escolha geralmente se baseia na existência de varas e/ou câmaras especializadas em Direito Empresarial nesses locais.

A criação de varas e câmaras especializadas é uma demanda antiga e contribui para a qualidade e celeridade das decisões judiciais, mas essa realidade não é presente em todos os Tribunais de Justiça do país, mesmo com a Recomendação 56/19 do CNJ.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo é uma referência nessa especialização, possuindo varas regionais especializadas em Direito Empresarial e câmaras especializadas no segundo grau, sem reclamações sobre processos oriundos de foro de eleição contratual ou seu impacto nos serviços jurisdicionais.

As partes não poderão mais, ao firmarem um contrato empresarial, escolher que qualquer conflito será resolvido por uma jurisdição especializada. Curiosamente, poderiam optar pela via arbitral ou por uma jurisdição internacional, sem restrições, pois não houve alteração no artigo 25 do CPC.

O que dizer então dos princípios e direitos da liberdade econômica trazidos pela Lei 13.874/2019? Seria possível, com base nesta norma, defender a não aplicação da restrição à cláusula de eleição de foro?

Entendo que não, afinal, mesmo sendo de natureza empresarial, os processos seguirão as mesmas regras do CPC, não existindo, pelo menos por enquanto, um Código de Processo Empresarial. Portanto, não vislumbro a possibilidade de excluir os processos judiciais empresariais de uma regra geral do CPC.

Aplicação da Norma

Então, o que fazer? Como essa nova norma afetará contratos firmados a partir de sua publicação e também os contratos já assinados, mas sem processos ajuizados? Serão afetados também os processos já em curso cuja competência foi baseada na cláusula de eleição de foro? Se sim, até que fase processual? Mesmo sem conflito entre as partes acerca do foro, o juiz poderá decliná-lo?

A resposta parece estar na análise do artigo 14 do CPC, que determina a aplicação imediata da norma processual aos processos em curso, levando à conclusão de que a nova regra se aplicaria até mesmo aos contratos com demandas judiciais em curso. Porém, é necessário analisar o novo texto da regra processual.

Comecemos pelo parágrafo primeiro do artigo 63, que determina que a cláusula de foro só produz efeito quando relacionada ao domicílio das partes ou ao local da obrigação. A nova norma jurídica ataca a cláusula de eleição de foro apenas no plano da efetividade, não da existência ou validade, mantendo incólume sua presença no mundo jurídico, apenas impedindo sua produção de efeitos.

Assim, entendo que tal disposição não poderia ser aplicável a processos em curso onde já houve a estabilização da jurisdição (após a contestação sem questionamento, conforme parágrafo quarto), visto que a cláusula de eleição de foro já produziu seus efeitos e a norma processual não poderá retroagir, impedindo apenas a produção de efeitos de cláusulas de eleição de foro após sua vigência.

O problema reside, entretanto, na nova redação do parágrafo quinto do artigo 63, que estabelece como prática abusiva o ajuizamento de ação em juízo aleatório, determinando a declinação de ofício da competência.

Nesse ponto, o legislador, talvez por atecnia, deixa de lado o plano da eficácia, para atacar a validade do ato jurídico, visto que a abusividade implicaria na ilicitude do ato e consequentemente na sua nulidade.

Espero, entretanto, que essa regra não se aplique às cláusulas de eleição de foro, visto que o ajuizamento do processo no foro eleito não seria apresentação da demanda em juízo aleatório, mas no juízo escolhido pelas partes, podendo ter sua eficácia afastada posteriormente pelo juízo, conforme parágrafo primeiro, e declinada a competência.

Não duvido, porém, que seja dada interpretação diversa, considerando a aplicação do parágrafo quinto em casos de ajuizamento da ação no foro eleito que não guarde pertinência com o domicílio das partes ou o local da obrigação, o que teria consequências temerárias.

Como destacado acima, isso resultaria na nulidade do negócio jurídico que elegeu o foro, que não seria suscetível de confirmação e nem convalidaria pelo decurso do tempo, podendo ser reconhecida em processos em curso.

Não se poderia tratar de uma nulidade de algibeira, visto que apenas após a nova lei seria possível sua alegação, abrindo uma janela de oportunidade para quem desejasse, por exemplo, em um processo com decisão desfavorável, questionar a competência do foro eleito.

Um cenário pior se desenha se a interpretação aplicada considerar a competência em questão como absoluta, com base na parte final do parágrafo que determina seu reconhecimento de ofício e na impossibilidade de prorrogação da competência, por se tratar de uma nulidade.

Nesse caso, tal incompetência poderia ser alegada a qualquer tempo ou grau de jurisdição, podendo ainda ser objeto de ação rescisória, conforme previsão do artigo 966, II do CPC, abrindo um leque de possibilidades de questionamentos até mesmo sobre situações já estabilizadas.

Não creio na prevalência de tal interpretação, pois seria contrária a toda lógica de competência do ordenamento, mas não é possível simplesmente ignorá-la.

E respondendo ao último questionamento apresentado, sim, o juiz poderá declinar mesmo contra a vontade das partes, afinal, este foi o objetivo da lei, permitir que um determinado Poder Judiciário rejeite as demandas que as partes escolheram submeter à sua apreciação.

Constitucionalidade

Por fim, ainda deixo minhas dúvidas sobre a constitucionalidade dessa alteração, diante do princípio da liberdade e da autonomia privada, acreditando na declaração de inconstitucionalidade da nova norma, mas defendendo que, caso seja mantida no ordenamento, aplique-se às cláusulas de eleição de foro somente o previsto na nova redação do parágrafo primeiro, limitado ao plano da eficácia, não atingindo processos em curso cuja competência já tenha se estabilizado.

Data: 10 de junho de 2024
Fonte: https://www.conjur.com.br/2024-jun-10/insatisfacao-do-tj-df-levou-a-criacao-de-um-novo-principio/

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