
Pedidos de recuperação judicial no campo dispararam no ano passado. Foram 426 solicitações para produtores rurais, 235% a mais que em 2023 inteiro
O ano de 2024 foi de crise para os produtores rurais brasileiros. As fortes chuvas que atingiram o Sul do Brasil e a estiagem castigaram boa parte do país, inclusive Minas Gerais, o que afetou a plantação de diversos produtos. Essas são causas apontadas como responsáveis pela baixa produção agrícola nacional, segundo o pesquisador Mauro Osaki, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq/USP), principalmente em relação aos grãos de soja e milho, duas das commodities mais produzidas no país.
“Uma chuva mal distribuída, seca e alta temperatura. Foi uma safra que começou bastante desafiadora. Em 2023, tivemos excesso de chuvas no Sul, o que atrasou o plantio. Tínhamos pancadas ocorrendo dentro da normalidade na Região Centro-Oeste mas, de repente, cortou no meio de novembro, com uma estiagem forte. Assim, você teve uma perda de rendimento nos principais estados produtores”, analisa Mauro Osaki.
Como consequência imediata da crise, o pesquisador fala do impacto no mercado e demonstra preocupação com os desdobramentos de curto e médio prazo. “Muitas das empresas que estão em recuperação judicial são do setor de grãos e várias fizeram grandes investimentos na época em que o preço da soja estava bastante elevado e agora têm contas a pagar. Financiamentos foram feitos, mas não têm dinheiro para quitar as parcelas. Quem não fez a reserva de dinheiro para este momento de frustração de safra tem que recorrer a outros artifícios para colocar a casa em ordem”, analisou. Ele também crava que o produtor com a colheita abaixo de 40 sacos de grãos por hectare registrou prejuízo ao fim do ciclo.
A desvalorização mundial das principais commodities exportadas pelos produtores brasileiros também intensificou a queda no período. O cenário poderia ser ainda pior mas, devido à redução no preço de fertilizantes, sementes e outros itens usados na plantação e cultivo, houve um prejuízo diminuto.
O milho, segundo o professor, registrou prejuízo na safra do último ano. Porém, comparado com as de 2022 e 2023, o resultado foi menos prejudicial. Já a soja, que teria seu valor aumentado caso houvesse diminuição da demanda, não passou pela valorização por escassez, em virtude da produção de outros países. “Se pegarmos a soja, que é o principal produto que temos no Brasil, vemos que existe uma queda significativa na produção. Ela teve um decréscimo, na safra 2023 para 2024, de cerca de 43%.”, avalia.
Apesar de termos observado o rebaixamento do preço do fertilizante, sementes e outros no custo de produção, tivemos a queda de 46% na receita bruta. Ou seja, mesmo com o custo de produção recuando, não foi suficiente, uma vez que o preço e a rentabilidade também recuaram. “Com o Brasil caindo na produtividade, o mercado mundial, teoricamente, teria essa escassez no setor, só que como a Argentina compensou essa perda, o mercado entendeu a oferta como normal, e manteve o recuo de preço. Desta forma, nós perdemos. Isso explica a soja tendo esse forte recuo”, analisa Osaki.
Cenário jurídico é impactado
O contexto do segmento gerou um aumento nos pedidos de recuperação judicial no setor. Nos três primeiros trimestres do último ano, foram registrados 426 pedidos de recuperação judicial para pessoas físicas, um total 235% maior que em 2023 inteiro. Houve 299 pedidos para pessoas jurídicas, 157% a mais, segundo levantamento da Serasa Experian.
Entre os casos de Minas Gerais, se destaca o do Grupo Patense, de Patos de Minas, Região do Alto Paranaíba, que fabrica ração para fazendas e pets; óleo para indústria de beleza e higiene; e biocombustíveis, que possui uma dívida superior a R$ 2 bilhões, sendo a 2ª maior recuperação judicial de agronegócio do Brasil, atrás apenas da Agrogalaxy Participações, de Goiânia, que possui uma dívida de quase R$ 5 bilhões.
O uso de pedidos de recuperação judicial é o instrumento mais tradicional para as empresas, inclusive produtores rurais, no sentido de recuperar a saúde financeira dos negócios. O advogado Filipe Denki, especialista em Direito Empresarial, no entanto, sugere a recuperação extrajudicial como uma alternativa mais interessante para quem produz e está com alto endividamento, principalmente os que se encontram na situação devido à Cédula de Produtor Rural de Liquidação Física (CPR Física), que é quando o produtor ou a cooperativa captam recursos financeiros e se comprometem a entregar o produto no futuro. “A negociação fora dos tribunais possui algumas vantagens, como a celeridade e o baixo custo em relação à recuperação judicial”, ressalta por Denki.
O advogado Marcelo Godke, especialista em direito dos contratos, aponta que “a principal vantagem de fazer a extrajudicial, antes de fazer a judicial, é que ele é um acordo negociado. A pessoa tem que entrar em contato com os credores e falar que está com problemas e que não vai conseguir arcar com todas as obrigações financeiras, além de propor um acordo de forma extrajudicial. Se ele conseguir credores suficientes, dentro daquela categoria de credores que ele vislumbra, o que quer dizer pelo menos 50% (mais um) dos créditos, ele arrasta os demais. Na recuperação judicial, eu entro com um processo para dar um susto em todo mundo e, depois, eu começo a negociar”, afirmou.
A possibilidade de fazer um acordo de recuperação com determinada categoria de credores também é um cenário apontado como positivo por Godke, que ainda menciona um outro ponto favorável. “Não precisa trazer todos os credores para dentro dela (a recuperação extrajudicial). Vamos dizer que os problemas são credores bancários, fornecedores ou um outro qualquer. Caso o estresse seja dentro de uma categoria, poderia ser feita uma recuperação dentro do específico segmento, tudo bem, mas quando é generalizado, não é o caso. E tem uma terceira vantagem: para fazer recuperação judicial, tem que esperar dois anos para um novo pedido judicial. Se fizer um acordo extrajudicial e, na sequência, seis meses depois, perceber que o acordado não foi o suficiente, nada impede que a pessoa entre, imediatamente, com a recuperação judicial”, comenta.
Entretanto, Godke alerta que é necessário que o produtor consiga comprovar dois anos de atividade empresarial, o que, segundo ele, nem sempre é cumprido pelos agricultores. Por isso, ele alerta sobre a importância de ter toda a documentação atualizada. Em novembro do ano passado, por exemplo, o desembargador responsável pelo caso da Patense pediu que fosse feito um laudo de viabilidade econômico-financeira da empresa que, entre outras coisas, analisa a sua documentação.
Para evitar problemas futuros, o jurista aconselha a contratação de um contador e um advogado para evitar problemas em momentos delicados. “Às vezes, o produtor rural não tem todos os registros societários na junta comercial. É muito comum que ele acabe fazendo muita coisa em seu próprio nome e não no nome de uma sociedade empresária, por exemplo. É muito importante que a parte societária esteja em dia. Ele tem que se preparar para, em um momento de estresse, conseguir fazer um pedido desse”, alerta.
O head de agronegócio da Serasa Experian, Marcelo Pimenta, afirma que os números de recuperação judicial, que começaram a ser levantados em 2021, são inflados por agricultores que já vinham enfrentando problemas. “A maior parte de quem está pedindo recuperação judicial são produtores que já estavam alavancados há dois ou três anos. Eles já se encontravam com dificuldade para rolar essas dívidas e, em um momento no qual o crédito fica mais caro e o credor passa a analisar mais, ou passa a pedir mais garantias, ele tem mais dificuldades e muitos acabam usando o instrumento da recuperação judicial. A maior parte já vinha de endividamento alto”, explica.
Barateamento de insumos
O barateamento de itens fundamentais para a plantação e cultivo, como fertilizantes, defensivos agrícolas, sementes e outros, não solucionou o problema dos produtores de milho e soja, mas ajudou outros agricultores no Brasil, segundo analisa o pesquisador Mauro Osaki.
Ao pensar no setor como um todo e no episódio atípico que tomou o Sul do país, o pesquisador explica: “Soja e milho são as principais culturas que estão dentro das áreas agrícolas que nós temos. Outros segmentos são importantes, como a cana-de-açúcar e o café, e têm sido beneficiados com a redução de preços no custo de produção.”
Osaki chama a atenção, também, para o que ‘deu certo’ no ano: “Os únicos que tiveram saldo positivo no ano passado foram o arroz, por causa do mercado doméstico, e o feijão. Eles tiveram reflexos positivos pela redução de custos e venderam dentro do mercado interno. O arroz, pela tragédia de maio, gerou uma corrida da população atrás do produto, mas tinha produção suficiente. Boa parte da safra já estava colhida”, afirma.
As enchentes, que deixaram grande parte do Rio Grande do Sul debaixo d’água em abril e maio de 2024, geraram um receio na população sobre uma possível falta de arroz, já que o Estado é responsável por 70% da produção nacional. À época, o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro (PSD), chegou a defender que o Brasil importasse o produto para evitar um possível desabastecimento. A medida, segundo a Federação Nacional dos Produtores de Arroz (Fedearroz), não seria necessária, pois mais de 84% das lavouras gaúchas já haviam sido colhidas e, desta maneira, a situação ‘terminou bem para todos’.
Fonte: https://www.em.com.br/agropecuario/2025/02/7050584-dividas-e-incertezas-um-desafio-para-o-agro.html