
Suzimaria Maria de Souza Artuzi
No cenário da recuperação judicial, um dos debates mais técnicos e recorrentes diz respeito à natureza dos créditos oriundos de cooperativas de crédito. A Lei 11.101/2005, em seu art. 6º, §13 (introduzido pela Lei 14.112/2020), estabelece que os créditos decorrentes de atos cooperativos não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial.
Com base nisso, muitas cooperativas buscam a exclusão de seus créditos da lista concursal. Contudo, como já reconhecido pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT) e por diversos outros tribunais, esse enquadramento não pode ser feito de forma automática e desassociada da realidade prática das operações.
Atos cooperativos ou operações bancárias?
A distinção entre o que é, de fato, um ato cooperativo e o que se trata de uma operação bancária camuflada em roupagem cooperativista é essencial. O artigo 79 da Lei 5.764/71 define:
“Denominam-se atos cooperativos os praticados entre as cooperativas e seus associados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associados, para a consecução dos objetivos sociais.
Parágrafo único. O ato cooperativo não implica operação de mercado, nem contrato de compra e venda de produto ou mercadoria.”
Portanto, operações de crédito garantidas por cédulas bancárias, com características similares às praticadas por bancos — como prazos, encargos financeiros e garantias — extrapolam os limites do ato cooperativo.
Renato Lopes Becho observa que “o ato cooperativo é aquele praticado entre a cooperativa e seus associados, ou entre cooperativas, com o objetivo de alcançar as finalidades sociais previstas em seus estatutos. Não se confunde com operações de mercado típicas de instituições financeiras tradicionais” (2019).
No mesmo sentido, a jurisprudência do TJMT, no julgamento do Agravo de Instrumento nº 1000646-39.2025.8.11.0000, entendeu que a operação de crédito realizada por uma cooperativa com cédula de crédito bancário não se caracteriza como ato cooperativo e, por isso, deve ser tratada como crédito concursal, submetendo-se ao processo de recuperação judicial.
Segurança jurídica e impacto nos cooperados
Essa distinção tem reflexos práticos importantes. Quando a cooperativa tenta se afastar dos efeitos da recuperação alegando estar protegida por um suposto ato cooperativo, ignora-se que, em caso de deságio aprovado no plano, esse deságio será, em regra, absorvido pelos próprios cooperados — inclusive por cooperados que estejam, eles próprios, em recuperação judicial. É um evidente conflito de lógicas e interesses, que compromete o equilíbrio do sistema e a própria racionalidade da estrutura cooperativa.
O comportamento contraditório (ou venire contra factum proprium), de uma instituição que vota pela aprovação do plano e, ao mesmo tempo, tenta excluir seu crédito da recuperação, é justamente o que decisões como a do TJMT e de outros tribunais buscam evitar.
A posição da jurisprudência superior
O Superior Tribunal de Justiça também já se manifestou sobre o tema. No AgInt nos EAREsp 1.302.248/PR, relatado pelo Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, a Corte afirmou:
“A orientação jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de se admitir a aplicação das disposições do Código de Defesa do Consumidor às relações travadas entre cooperados e cooperativas quando estas desenvolvem atividades equiparadas às instituições financeiras” (STJ, j. 20/10/2020, DJe 29/10/2020).
Ou seja, quando a cooperativa atua com a mesma lógica de mercado que os bancos, ela passa a ser tratada como tal. A forma jurídica não pode servir de escudo para práticas que, na essência, são típicas de instituições financeiras.
Conclusão
A diferenciação entre atos cooperativos e operações de natureza bancária é uma análise essencial dentro dos processos de recuperação judicial. O objetivo não é desqualificar o papel das cooperativas de crédito — que desempenham importante função no acesso ao crédito e no fortalecimento das economias locais —, mas sim assegurar que a legislação seja aplicada de forma técnica, justa e coerente com a natureza jurídica dos atos praticados.
Quando a cooperativa atua de forma semelhante às instituições financeiras tradicionais, sobretudo por meio de instrumentos típicos do mercado bancário, é necessário reconhecer que esses contratos se afastam da essência cooperativa prevista no ordenamento jurídico. O respeito à segurança jurídica e à isonomia entre os credores exige essa análise criteriosa, especialmente em um ambiente tão sensível quanto o da recuperação judicial.
Mais do que um debate teórico, essa distinção tem impacto direto na previsibilidade do sistema e na confiança de todos os envolvidos no processo. Manter a coerência entre forma e conteúdo jurídico é, portanto, um passo essencial para fortalecer tanto o instituto da recuperação judicial quanto o próprio cooperativismo, que deve ser preservado em sua vocação original.
Fonte: https://www.folhamax.com/opiniao/cooperativa-ou-banco-a-distincao-necessaria-na-recuperacao-judicial/485847